Nem tudo que reluz é ouro. Do mesmo modo, nem todos os escritos são doutrinas. E indo mais longe, nem todas as doutrinas são “communis opinio doctorum”.
A expressão latina pode ser traduzida como a opinião comum dos doutores e refere-se à opinião geralmente aceita ou à opinião predominante entre os especialistas ou estudiosos em um determinado campo de estudo, especialmente no direito. Em outras palavras, no contexto jurídico, está se referindo à opinião comum ou ao entendimento geralmente compartilhado por juristas, professores de direito e especialistas na área.
Mostra-se relevante porque, em muitos casos, os tribunais e as autoridades legais consideram a opinião dos especialistas como uma fonte importante de interpretação e orientação. Em situações complexas ou controversas, a sua utilização como um argumento convincente pode ser decisiva para apoiar uma interpretação específica da lei ou para sustentar um ponto de vista jurídico.
No entanto, é importante observar que a “communis opinio doctorum” não é uma regra absoluta e pode haver divergências de opinião entre os especialistas. Além disso, a aceitação ou rejeição da opinião dos especialistas depende do contexto e da jurisdição específica. Em alguns casos, um tribunal pode optar por seguir uma opinião minoritária se a considerar mais convincente ou apropriada.
A relação entre arbitragem e a opinião comum dos doutores envolve principalmente o uso desta como fonte de orientação para aquela, especialmente quando as disputas versam sobre interpretação dos contratos.  Citar a opinião comum dos especialistas como parte da argumentação jurídica é válida a fim de fortalecer a credibilidade das alegações, demonstrando que a interpretação proposta está alinhada com a visão predominante na área relevante.
Diferente do juiz natural do Poder Judiciário, na arbitragem é comum as partes escolherem árbitros que sejam especialistas em áreas específicas do direito ou do comércio relacionadas à disputa. A escolha dos árbitros em um procedimento arbitral é uma característica fundamental da arbitragem e diferencia esse processo do sistema judicial tradicional.
A possibilidade de escolher árbitros permite às partes selecionar indivíduos por sua experiência e conhecimento na área em questão, o que pode incluir uma compreensão sólida da “communis opinio doctorum” sobre o objeto da arbitragem. Isso pode ser especialmente importante em casos complexos em que a opinião dos especialistas é crucial para a resolução da disputa.
Os árbitros que têm uma reputação de estar alinhados com a opinião comum em questões específicas podem ser vistos como mais confiáveis pelas partes. Isso pode influenciar o processo de escolha, pois elas podem acreditar que esses árbitros são mais propensos a decidir de acordo com a opinião predominante dos especialistas. O que nem sempre é verdade. Nesta altura, já se acende o alerta para o risco de viés de confirmação, onde as partes buscam árbitros que apenas reforcem suas posições.
Após a escolha dos árbitros, depois de instaurada a arbitragem, as partes apresentam argumentos e evidências perante o tribunal para apoiar sua posição. Novamente a opinião comum dos doutores encontra lugar, agora na fase em que pode ser usada como uma fonte de argumentação para sustentar uma interpretação contratual ou legal específica. Isso pode envolver a apresentação de doutrinas já consolidadas sobre o tema ou pareceres de especialistas feitos “tailor made” para o caso, que compartilham uma visão comum sobre a questão.
Se houver uma opinião comumente aceita entre os especialistas sobre determinada coisa, os árbitros podem usá-la como orientação ao tomar suas decisões, seja para ajudar a clarificar o caso ou elucidar em outras palavras aquilo que o tribunal já vem alinhado. A opinião comum também pode contribuir para formar uma “ratio” mais coerente em casos similares. No entanto, e seja lembrado com ênfase: a decisão final ainda é uma prerrogativa do tribunal arbitral, que deve pesar essa opinião junto com outras evidências e argumentos apresentados pelas partes ou colocá-la de lado por diversos motivos que a tornam inútil ao caso concreto.
Como tudo, existem pontos de atenção e críticas a considerar quando se utiliza essa abordagem no curso do procedimento, tanto para as partes quanto para os árbitros. A “communis opinio doctorum” não significa que determinado entendimento é unânime entre os especialistas, tampouco uniforme. Pode haver divergências em detalhes que permitam até mesmo duas interpretações na mesma opinião comum.
As partes podem ser tentadas a citar apenas as opiniões de especialistas que apoiam sua posição ou que melhor se encaixem em sua estratégia, ignorando opiniões divergentes. Isso pode ser visto como uma tentativa de manipulação e pode prejudicar a sua credibilidade perante o tribunal arbitral. Portanto, é importante que identifiquem e apresentem a abordagem predominante, mas também estejam cientes das divergências e saibam como abordá-las.
Outro ponto de atenção é a descontextualização. Ao utilizar a opinião comum como uma colcha de retalhos, as partes podem não fornecer o contexto completo das opiniões dos especialistas. O que pode levar a uma compreensão inadequada por parte do tribunal arbitral, já que os entendimentos podem ser mais complexos do que simplesmente concordar ou discordar.
No mesmo sentido, os entendimentos podem variar entre diferentes jurisdições e culturas. O que é considerado comum em uma região pode não ser o mesmo em outra, criando um desafio na aplicação do que poderia ser uma opinião comum em casos internacionais.
Os árbitros devem analisar cuidadosamente as evidências apresentadas pelas partes e considerar as diferentes perspectivas. Devem também decidir o quão persuasivas são as opiniões dos especialistas trazidos. Nem todas as opiniões têm o mesmo peso, o que levará a um balanceamento de crédito entre respeitabilidade do especialista, fundamentação, coerência com o sistema jurídico e próprio caso concreto.
Embora a opinião comum possa ser fonte útil de orientação, os árbitros devem abordá-la com cuidado, considerando todas as evidências apresentadas e mantendo sua independência e imparcialidade na tomada de decisões. A escolha do árbitro pela sua expertise em determinada área não o autoriza influenciar-se em demasia a ponto de ignorar o universo em que é situado o procedimento arbitral em detrimento de uma visão focada numa abordagem dita comum dos doutores.
Para mitigar os riscos de imparcialidade e preservação do procedimento, é importante que as partes, ao selecionar árbitros, considerem critérios objetivos, como a experiência e a expertise dos candidatos, em vez de escolher com base apenas na conformidade com uma opinião específica; que os árbitros revelem possíveis conflitos de interesse; e que o tribunal como um todo mantenha a imparcialidade.
Mesmo se um árbitro for selecionado com base em sua afinidade com a opinião comum de uma das partes, o tribunal arbitral deve garantir que todas as partes sejam tratadas de forma justa e equitativa e que todas as evidências e argumentos sejam considerados imparcialmente. É fundamental que as partes, os árbitros e o tribunal estejam cientes dessas preocupações e tomem medidas para garantir a integridade do procedimento.
A indicação de um indivíduo para compor um tribunal arbitral com base na sua participação na “communis opinio doctorum” tem consequências diretas no andamento do procedimento. Algumas das quais podem ser positivas, enquanto outras podem levantar preocupações.
O primeiro impacto potencialmente positivo é a especialização: se um árbitro é escolhido por sua experiência e conhecimento em questões específicas relacionadas à disputa, andamento do procedimento pode ser acelerado, pois já estará mais familiarizado com os problemas jurídicos ou técnicos abordados.
O segundo é a eficiência: um árbitro que compartilha a opinião comum das partes pode entender melhor os argumentos e posições desde o início, facilitando a resolução eficiente da disputa.
O terceiro é a maior uniformidade possível sobre interpretações legais: se o árbitro já estiver alinhado com a interpretação legal predominante, é provável que haja menos conflitos sobre a aplicação de leis e regulamentos, sobretudo quanto envolver normas de Direito Internacional Privado, o que pode economizar tempo no procedimento.
De outro lado, existem também preocupações potenciais. A primeira é a percepção de parcialidade: a escolha de um árbitro com base na “communis opinio doctorum” das partes pode criar uma percepção de que ele já tem uma inclinação antes mesmo de ouvir o caso e prejudicar a confiança das partes, ou, ainda, fazer com que a parte contrária veja a escolha do árbitro como injusta e estar menos disposta a cooperar no procedimento, o que pode levar a atrasos e conflitos adicionais.
A segunda é a possibilidade de conflitos de interesse: se o árbitro tiver fortes vínculos com a opinião comum ou com as partes que o escolheram, pode levantar preocupações legítimas sobre conflitos de interesse, entrando numa possível quebra de imparcialidade.
A terceira é acerca da complexidade das questões: dependendo das obscuridades técnicas ou jurídicas em disputa, um árbitro alinhado com uma corrente intransigente pode ser menos disposto a considerar argumentos inovadores ou perspectivas alternativas, o que pode limitar a flexibilidade do procedimento.
Dessa forma, o uso da “communis opinio doctorum” nas manifestações das partes em procedimentos arbitrais pode ser uma estratégia eficaz para fortalecer argumentos e persuadir o tribunal arbitral. No entanto, é importante fazê-lo de forma ética, apresentando uma visão justa e completa da opinião dos especialistas e reconhecendo as limitações e possíveis críticas associadas a essa abordagem. Além disso, as partes devem estar cientes de que a opinião comum pode não ser tão comum quanto pensam, quando se leva em consideração a cultura jurídica e o contexto do caso.
Por Davi Santana, Graduando em Direito na Universidade Católica do Salvador com intercâmbio na Universidade do Porto e extensão na Pontificia Università Lateranense di Roma.
Fonte: Migalhas, quinta-feira, 19 de outubro de 2023.
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